Pedro Vítor dos Santos Barbosa – Matemática, UFCG
pedrovt91@gmail.com
Programa de Educação Tutorial (PET) – Matemática e Estatística
Nos dias de hoje, quando queremos conhecer uma pessoa famosa, basta pesquisar por seu nome na internet e encontraremos fotos, vídeos e diversos materiais, mas antes do avanço dos meios de comunicação, como faríamos para garantir que uma pessoa não era apenas um nome? Como garantiríamos a sua existência? Isso poderia ser mais complexo do que parece, pois casos como esse aconteciam e é sobre a história de um deles que iremos falar nesse texto, mais precisamente, a história de Nicolas Bourbaki, o matemático que nunca existiu.
Essa narrativa tem começo em 1934, na École Normale Supérièure (Escola Normal Superior) ou ENS situada em Paris. Essa instituição foi responsável pela formação de importantes nomes como Georges Pompidou e Jean-Paul Sartre. Foi nessa instituição que se conheceram os seis protagonistas da nossa narrativa: Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Delsarte, Jean Dieudonné, René de Possel e André Weil.
Antes de prosseguir com a saga dos nossos personagens principais, é importante lembrar que em 1934 haviam se passado apenas 2 décadas do destrutivo evento conhecido como a Primeira Guerra Mundial. Nessa catástrofe, muitos matemáticos importantes morreram e seus trabalhos foram perdidos. Além disso, diferentes ramos da matemática começaram a utilizar metodologias diferentes para progredir com seus trabalhos, o que acabava dificultando o compartilhamento de informação entre esses ramos, deixando o campo da pesquisa matemática fragmentado.
É nesse contexto que entram os personagens principais da nossa história. Insatisfeitos com o livro de análise matemática que era utilizado como base em seus cursos, os seis estudantes decidem formar um grupo para formular um novo material de estudo que fosse melhor organizado e servisse como base para o seu curso.
O projeto inicial do grupo era, em menos de um ano, criar um livro de análise matemática, portando de 1000 a 1200 páginas, que pudesse substituir o material utilizado até então. O grupo era disposto de forma igualitária e não hierarquizada, o que fica evidente na fala de Weil expressa em (4):
(Mantivemos) em nossas discussões um caráter cuidadosamente desorganizado. Em uma reunião do grupo, nunca houve um presidente. Qualquer um fala o que quiser e todos têm o direito de interrompê-lo… O caráter anárquico dessas discussões foi mantido ao longo da existência do grupo… Uma boa organização sem dúvida exigiria que cada um recebesse um tópico ou um capítulo, mas o a ideia de fazer isso nunca nos ocorreu… O que se aprende concretamente dessa experiência é que qualquer esforço de organização teria resultado em um tratado como qualquer outro…
Durante a elaboração do livro, André Weil percebeu uma necessidade de produzir material para mais que apenas uma área, então decidiu que deveriam ser incorporados ao projeto tópicos de Álgebra, Teoria de conjuntos e Topologia, além dos conteúdos de análises que estavam previstos. Uma vez concretizada essa mudança, as 1200 páginas se tornariam 3200 e o nome do livro seria mudado de tratado de análise para Éléments de mathématique.

Fonte: <https://archive.org/search.php?query=creator%3A%22Bourbaki%2C+Nicolas%22>
Em 1935, o grupo decidiu utilizar o pseudônimo de Nicolas Bourbaki. Uma das teorias para a origem bem humorada desse nome é em referência a um fato curioso que havia ocorrido com o grupo anos atrás. Quando Weil era ainda um calouro na École Normale Supérièure, ocorreu uma palestra onde o conferencista utilizava uma grande barba falsa e fingia ser um importante matemático estrangeiro. Durante a palestra, o falso matemático brincava ao citar diversos teoremas inexistentes e dava nomes de generais franceses a cada um deles. O último e mais absurdo teorema foi o Teorema de Bourbaki. O grupo gostou tanto da brincadeira que decidiu adotar o nome como pseudônimo do grupo. O “Nicolas”, por sua vez, acredita-se que era uma referência clássica a um antigo herói grego de quem o general Bourbaki era descendente.
O nome fictício foi usado pela primeira vez quando o grupo precisou publicar um trabalho em um periódico francês, apresentando Bourbaki como um velho professor da Université Royale de Besse-en-Poldévie.
Entretanto, nem todo mundo acreditou na existência de Bourbaki como pessoa. Ralph Boas, diretor executivo da revista Mathematical reviews publicou um artigo que indicava Bourbaki como um grupo de estudantes franceses. Em resposta, a enciclopédia britânica que havia publicado o texto de Boas recebeu uma carta de N. Bourbaki, afirmando sua existência, o que descredibilizou o escritor americano. Não satisfeitos, o grupo Bourbaki fez circular o rumor de que Boas não existiria, mas seria um grupo de jovens matemáticos norte-americanos que atuariam em corporação como os editores da Mathematical reviews.
Para acompanhar o trabalho desenvolvido por cada membro, o grupo desenvolvia três encontros durante o ano para mostrar o progresso em suas pesquisas. Os integrantes, que posteriormente fixaram seu limite em nove pessoas, decidiram também por aposentarem-se das discussões mais ativas do grupo assim que completassem 50 anos com a justificativa de que nessa idade perderiam a juventude necessária para as ideias mais inovadoras, podendo ainda continuarem como ouvintes ou consultores. Por fim, Bourbaki não aceitava candidatura de membros, desse modo eles convidavam possíveis novos integrantes para seminários, onde seriam colocados à prova.
O legado de Bourbaki é extenso e de extrema importância até hoje. Sua principal obra foi, de fato, Éléments de mathématique que acabou se tornando uma coleção de 10 livros que foram publicados entre 1939 e 1998. Essa coleção que, ao todo, ultrapassou 7000 páginas, trazia resultados gerais e úteis em diversas áreas da matemática como Teoria dos Conjuntos, Álgebra, Topologia Geral, Funções de uma Variável Real, Espaços Vetoriais Topológicos, Integração, Álgebra Comutativa, Variedades Diferenciáveis e Analíticas, Grupos e Álgebra de Lie, e, Teorias Espectrais. (MASHAAL, 2006, p.52).
Bourbaki não foi responsável por nenhum teorema importante em sua história, porém não podemos dizer que sequer o grupo tenha se dedicado a isso. Os integrantes do grupo Bourbaki buscaram reestruturar a matemática de forma clara utilizando um modelo axiomático que articula entre diversas áreas dessa ciência que até então eram desconexas. Além disso, diversas terminologias e notações que foram adotas por Bourbaki são amplamente utilizadas até hoje.
O grupo ficou famoso não só por sua respeitada obra ou por seu senso de humor peculiar, mas também por abandonar a vaidade pessoal e utilizar do anonimato para divulgar o conhecimento. Por isso, para muitos, Nicolas Bourbaki é o maior matemático que já não existiu.
REFERÊNCIAS
- ESQUINCALHA, Agnaldo. Nicolas Bourbaki e o movimento na matemática moderna. Revista de Educação, Ciências e Matemática, Duque de Caxias, v.2, n.3, 2012. Disponível em: http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/recm/article/view/1865/1085
- PIRES, R. C. A presença de Nicolas Bourbaki na Universidade de São Paulo. 2006. Tese (Doutorado em Educação Matemática) –Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.
- MASHAAL, M. Bourbaki: a secret society of mathematicians. American Mathematical Society, 2006.
- WEIL, A. Organisation et désorganisation en mathématique,Bull. Soc. Franco Japonaise des Sci. 3 (1961), 23-35.